segunda-feira, 29 de março de 2010

série: passeios

coisa entranhada nas vísceras. dor de cabeça, cachaça e cerveja escura. falta de cigarro, de sono. movimento involuntário: encher novamente um copo que ainda nunca acabou. movimento involuntário: rastejar os olhos na prateleira, nove anos de leitura atrasada, esfregar os dedos nas lombadas dos livros até achar fungos que respirados sacralizem o Poema e a Noite.
chuva infinita: lagoas nas ruas, corrida de barcos de papel, água noturna invisível aos montes brilham nos postes, barulho selvagem escorre calçadas, ruas, folhas, telhado: impedimentos de medo do apocalipse. nenhum cachorro, nenhum carro, nenhum rumor de nada. o vento assovia sua canção de uivo. dança da chuva: nu na rua-lagoa girando a ciranda, enxarcando a alma, tecendo dentro de mim o desejo de despertar para um mundo simples, difícil de imaginar. pára o tempo em transe. horas e horas e horas.

movimento involuntário: levantar da cama, ir ao outro cômodo e desligar o despertador.

segunda-feira, 8 de março de 2010

série: passeios

I
eu caminho, colho uma flor e a ajeito atrás de minha orelha direita. as pessoas me olham. sorrio. a cada olhar, um sentimento. poucas vezes sinto coisas boas vindo delas. tento transmitir minha alegria, meus sentimentos. muitas vezes eu as ignoro. às vezes me provocam, às vezes sinto estar só. eu e a cor, a textura, o cheiro, a poesia da flor. também tem esse conforto de que ao olhar para a cena de um homem em flor, o ser se transforma. quem me conhece, comenta, faz pequenas piadas, solta pequenas risadas, reprova. três ou quatro elogios. dois elogios sinceros. o amargo, o sufoco, o pólen, o preconceito da flor. sou violentado por esses olhares que passam e se detêm. não consigo enxergar a todos, mas me contenho para não me sentir paranóico. alguém desconhecido se arrisca a dizer ironias em voz alta. agradeço a tentativa, abro minhas pétalas e a calma, o brilho, a alma, o desabrochar da flor.

II
o médico chega no plantão. são quase três horas da manhã. na recepção, olhou fixamente por alguns minutos para as fichas de entrada de pacientes. chega em uma ambulância um homem baleado. o médico examina a ferida bem ali no corredor. alguns chamam de frieza, mas é exatamente ali, no orifício aberto que o ferimento deve ser reparado. os olhos percorrem a lesão sem pressa. os enfermeiros e residentes parados aguardam instrução, e, em seguida a maca segue para a sala de cirurgia. a porta se abre, os enfermeiros descobrem que não têm água nas torneiras, mas tinta de todas as cores. não tem toalhas, nem luvas, nem toucas, nem jaleco ou viseira. Nenhum instrumento cirúrgico, nenhum remédio, nenhum equipamento, nenhuma agulha, algodão ou soro, mas pincéis de diversos tipos, giz de cera, giz pastel, papel canson, argila e muitos outros apetrechos conhecidos e desconhecidos desse tipo.
Nas paredes, fixadas em perfeita harmonia e dispostas linearmente, as obras de Nuno Ramos iluminadas por spots e devidamente etiquetadas. As crianças fazendo seus desenhos e colagens com diversos materiais são ajudadas pelas monitoras. Em dias chuvosos, num sábado como esse, no museu acontecem os velórios.